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Músicas à Moda Velha: Entrevista com Ivonite, Ivonildo e Ivônio

  • Foto do escritor: La Luna Cia de teatro
    La Luna Cia de teatro
  • 28 de jun.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 29 de jun.


Relato Sobre a Entrevista com Ivonite, Ivonildo e Ivônio

Por Amália Leal





No dia 10 de abril, percorremos as estradas sinuosas do bairro Moura, carregando a escuta atenta e o coração aberto. Fomos ao encontro de Ivonite, ou melhor, da Nite e de seu irmão Ivonildo, o Ni. Os dois nos acolheram com simplicidade e doçura, como quem abre a porta de casa e, junto com ela, abre também a alma.

Pouco antes de chegar na casa, ligamos para ela para confirmar o endereço, estávamos um pouco perdidos e não sabíamos qual era a casa correta. Ela nos disse que seu coração quase saía pela boca, tamanha era sua ansiedade e nervosismo pela nossa chegada. A conversa começou um pouco diferente das outras entrevistas do projeto "Músicas à Moda Velha”: Nite havia escrito uma carta muito bonita, na qual relatava as lembranças da tradição do Terno de Reis, quem eram os primeiros cantadores do bairro Moura, citava seus nomes, contava como eram as visitas que faziam às casas e cantava algumas das músicas que preenchiam as noites de dezembro e janeiro. Nite também nos mostrou algo que guardava com cuidado: um pequeno ninho e várias casquinhas de cigarra. Ela explicou que a cigarra troca de “pele” nessa época do ano, bem quando chega o tempo dos cantos natalinos. Logo percebemos que ali havia algo muito profundo: um pedaço de saudade morava em cada palavra dela.


Ela começou a carta lembrando os primeiros cantadores que seu pai, Ademéssio Domingo Fagundes, costumava citar: Justino Garcia, seu irmão Damião Garcia e o filho deste, Mário Damião Garcia. Depois do falecimento deles, a tradição seguiu viva com Ademéssio na voz e cavaquinho; Solene Martins, o Canhoto, com voz e violão; Ivônio Fagundes, seu irmão, na sanfona; Nelson Amorim na viola; Eduardo de Souza fazendo a terceira voz, chamada de tripa; e Chico e Damião, versadores e improvisadores.

Ela contou que às vezes, o Terno começava já em outubro, como num ano em que foram cantar de 23 de outubro até 15 de janeiro, homenageando também Santo Amaro, além do Natal e do Dia de Reis. Iam de casa em casa, e também para cidades vizinhas — Canelinha, Brusque, Blumenau — levavam alegria e música.

Nite ainda fez questão de homenagear um nome especial: Toninho Roberti. Segundo ela, um artista completo, que tocava acordeon, violão, viola, e, antes de falecer, construiu duas violas belíssimas, com uma afinação tão precisa que pareciam compradas em São Paulo. Toninho também foi autor de um dos versos mais belos que ouvimos naquela tarde:


“A cigarra já cantou, na mata virgem do além,Menino Jesus nasceu, numa gruta em Belém,Pedimos a proteção para o ano que vem.”


Foi ele quem compôs esse canto, que o pessoal do Grupo Terno de Reis Taquaras chegou a gravar. E foi esse mesmo verso que Nite nos ensinou a cantar.

Nite vem de uma família musical, dessas em que o canto brota fácil, a segunda voz soa naturalmente e os instrumentos passam de mão em mão como herança viva.  A mãe e a avó tocavam viola. Ela mesma aprendeu o violão e depois ensinou muitas pessoas de Canelinha a tocarem o instrumento, além disso, canta com beleza e emoção. O irmão, Ni, faz a segunda voz.  Outro irmão, Ivônio, traz consigo suas habilidades com a sanfona, instrumento que aprendeu a tocar sozinho. Mas hoje, a música nessa casa vive recolhida e silenciosa. Desde a partida dos pais, Nite confessa não ter mais forças para cantar. A música, que antes era festa e celebração, virou saudade demais. "Não sei se hoje eu receberia um Terno de Reis aqui em casa", nos disse com olhos marejados. "Ia doer muito". Mas naquele dia, talvez pelo calor do momento, das lembranças, ou pela nossa presença, de quem veio querendo muito ouvir, a música se permitiu existir de novo. Nite prontamente pegou o violão, o irmão afinou a voz e juntos tocaram e cantaram. Mais tarde, quando chegou o terceiro irmão, ele pegou a sanfona e tocou novamente. Os três cantaram e tocaram juntos. Era como se estivessem abrindo um baú cheio de coisas preciosas e delicadas. Outro terno muito bonito que eles nos apresentaram, foi o que diz:

" Acordai se estais dormindo, levantai se está acordado

Venha ver o Deus Menino, que na porta está parado

O galo canta, nasceu Jesus, 

o mundo inteiro encheu-se de luz..."


No fim, Nite nos serviu café e um pãozinho caseiro e ainda nos ensinou mais um versinho:


“Meia volta que o janeiro deu, volta e meia que o janeiro dá”


Saímos do Moura com a alma tocada. Pela beleza da música, mas também pela dor que ela pode carregar por conta das lembranças que evoca. Pela força da tradição e de quem a guarda, mesmo quando cantar virou saudade demais. Voltamos para casa com o coração apertado, mas transbordando de amor por aquele encontro e por aquela família de pessoas tão doces e queridas. Foi bonito demais reencontrar a música onde havia apenas silêncio: as canções continuam lá, quietas, mas vivas, esperando o momento de voltar a soar.


 
 
 

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